segunda-feira, 19 de março de 2012

Euller: Minas, Mercadante, piso e pré-sal

DOMINGO, 18 DE MARÇO DE 2012

Como Minas vai provar para Mercadante que já paga mais que o piso, até a chegada do pré-sal



Como Minas vai provar para Mercadante que já paga mais que o piso, até a chegada do pré-sal

Em breve, como tem sido noticiado, acontecerá a importante reunião entre o novo ministro do MEC, Mercadante, e os/as representantes das secretarias estaduais e municipais da Educação. No fundo é uma reunião meio quadrilhesca, já que todos ali, ou quase todos, são cúmplices na prática ilegal e imoral de não estarem cumprindo a Lei do Piso. Mas vão se reunir justamente para discutir o cumprimento da Lei do Piso, que eles não cumprem, mas dizem que cumprem. Se já cumprem, não haveria nem o que se discutir.

Logo, a primeira coisa que deveriam dizer, se fossem pessoas sérias, era isso:

- Caros colegas, devemos reconhecer que não estamos cumprindo a lei federal, que não pagamos o piso, não aplicamos o terço de tempo extraclasse, que não cumprimos os artigos da lei 11.738/2008. Então devemos pedir desculpas aos profissionais da Educação, aos alunos e aos pais de alunos e a toda a população brasileira, pelo mal que fizemos. E devemos, a partir de hoje, cumprir a lei, aplicando-a na carreira que existia (no caso de Minas e de outros estados) e que nós a destruímos para burlar a lei.

Contudo, esperar essa elevada atitude moral dos governantes é mais ou menos como esperar que os deputados abram mão dos seus salários, por pelo menos uns três meses, em prol de alguma causa social. Sejamos então mais realistas e imaginemos como será o diálogo entre os responsáveis pela política educacional do país.

O ministro do MEC pede a palavra e diz:

- Senhoras e senhores, venho aqui em nome da presidenta da República trazer uma mensagem de esperança e de otimismo para com o futuro da Educação no Brasil. Trata-se de uma prioridade do Governo Federal investir cada vez mais e melhor na Educação e na valorização dos profissionais da Educação. Nosso governo planeja reservar uma robusta parte do pré-sal para garantir o financiamento do piso (aplausos acalorados acontecem).

Em seguida, empolgada, pede a palavra a representante do governo de Minas Gerais:

- Senhor Ministro, fiquei encantada com a sua fala. Quero dar o meu testemunho de que em Minas Gerais o governo vem realizando o máximo possível em favor da Educação. Cumprimos até mais do que manda a Lei do piso. Até ontem, pagávamos 85% a mais do que manda a lei. Com o reajuste do piso de 22% para 2012, ainda estamos pagando 51,62% a mais do que o piso. Acreditamos que os professores de Minas, com esta supervalorização, nem precisam esperar pelo aporte extra do pré-sal.

Neste instante, o representante do governo do Pará pede a palavra:

- Prezados, tenho inveja do governo de Minas, que paga o piso com folga, pois afinal é um estado rico. Nós, do Pará, que somos um estado com receitas bem inferiores, estamos penando para conseguir pagar o mínimo necessário exigido pela lei, que é R$ 1.451,00 para o profissional com ensino médio. Nossos professores, com este salário básico de R$ 1.451,00, passarão a receber, como remuneração total, um vencimento próximo de R$ 3.500,00 para quem está em início de carreira. Que inveja nós temos de Minas Gerais, que pagava 85% a mais e agora paga 52% a mais!

Imediatamente, o representante de São Paulo, na guerra de poder existente com o de Minas - pois os caciques dos dois estados sonham com a presidência da República -, dá uma de bobo e espeta:

- De fato, prezados, eu também estou admirado com o desempenho de Minas Gerais nesse campo particular da Educação. Gostaria que a representante deste estado nos dissesse exatamente qual é o salário inicial de um professor em Minas Gerais.

Todas as atenções se voltam para a representante de Minas, que inicia a sua fala com pequenos e proverbiais rodeios:

- Bom, pessoal, o nosso esforço tem sido muito grande, também. Criamos uma nova fórmula no estado que resultou numa remuneração única, mais transparente aos olhos da população. Antigamente, os professores tinham grande dificuldade em calcular seus vencimentos, pois havia vários penduricalhos que atrapalhavam essa compreensão. Uma coisa muito incômoda. Agora não, os contracheques vêm enxutos, com duas linhas apenas, e com valores expressivos, que dá até vontade de voltar a lecionar.

A representante de Minas ia mudar de assunto, mas o de São Paulo insistiu:

- Mas, afinal, quanto é que ganha um professor em Minas Gerais?

- Ah, já ia me esquecendo - disse. Em Minas Gerais pagamos 52% a mais do que manda a lei do piso. Um professor em início de carreira recebe, para uma jornada de 24 horas, o equivalente a R$ 2.200,00 caso tivesse uma jornada de 40 horas.

Nisso o ministro Mercadante, que teoricamente é um economista, e que assistia ao debate sem grande entusiasmo, pediu que a representante de Minas esclarecesse melhor as coisas.

- Afinal, vocês pagam R$ 2.200,00 para a jornada de 24 horas de vencimento básico, ou isso é o salário total.

A representante de Minas desconversou, claro.

- Não, nós pagamos 52% a mais do que o valor proporcional ao piso de R$ 1.451,00.

O representante do Pará, meio irritado, tomou novamente a palavra e insistiu:

- Senhora representante de Minas Gerais, eu estava aqui morrendo de inveja do seu estado e querendo me inscrever para o próximo concurso público de professores em Minas, já que nós planejamos pagar apenas o piso de R$ 1.451,00, e com isso, somando-se às gratificações, o salário dos professores do Pará vai subir para R$ 3.500,00. Agora a senhora disse que paga R$ 2.200,00, o que já me deixou desiludido com a minha pretensão inicial de me mudar para Minas. Mas, acabo de receber um torpedo via celular, de uma professora do seu estado, que diz que o salário bruto dela, que tem curso superior e mais de 10 anos de estado, é de apenas R$ 1.320,00. Isso procede, sra. representante?

A sala ficou um silêncio total. E a representante do governo de Minas tomou um gole d'água e tentou explicar:

- Olha, o valor de R$ 1.320,00 é o salário inicial, entendeu? Ou seja, é para quem está iniciando na carreira agora, hoje, entendeu? E assim mesmo para uma jornada de 24 horas, o que consideramos seja um valor muito atraente e satisfatório. Sem falar que em abril próximo vamos dar mais 5% de reajuste!

Neste instante, os representantes do Rio, Goiás, Ceará, Bahia e Rio Grande do Sul pedem a palavra e tentam salvar a representante de Minas:

- Parabéns ao governo de Minas, disse o representante do Rio de Janeiro. Nós ainda pagamos um pouco menos do que vocês, mas vamos chegar lá.

- Faço minhas as suas palavras, disse o representante do Rio Grande do Sul, seguido, no mesmo tom, pelos do Ceará, de Goiás e da Bahia.

O ministro Mercadante se dá conta de que Minas se torna o melhor exemplo de cumprimento da lei do piso, já que, pagando apenas R$ 1.320,00 de salário total, o equivalente a dois salários mínimos, paga até 52% a mais do que o piso; e pede à representante do estado que detalhe para os demais colegas como conseguiu essa proeza.

- É simples, senhor ministro e demais colegas. O que eu vou dizer aqui é em off, está certo? Peço-lhes que não revelem para a imprensa, mesmo sabendo que ela é nossa aliada. Enquanto alguns governos entraram na justiça com aquela ADI 4167 pedindo para pagar o piso como remuneração total, nós, lá em Minas, que trabalhamos em silêncio, simplesmente aplicamos o princípio da remuneração total de forma diferente. Para isso, somamos o vencimento básico existente com as gratificações e aplicamos pequeno reajuste, resultando num valor total maior do que o valor proporcional do piso nacional. Entenderam?

O representante do Pará, ingênuo, perguntou:

- Mas pode fazer assim? O STF não determinou que piso é vencimento básico e que é proibido pagá-lo enquanto remuneração total, que era o que os governadores pediam na ADI 4167?

E a representante de Minas explicou:

- Vocês entendem as coisas muito ao pé da letra. Lá em Minas as coisas são diferentes. O STF disse que não podia somar vencimento com gratificações para atingir o valor do piso. Então o que nós fizemos? Acabamos com o vencimento básico e com as gratificações, e criamos uma outra forma de remuneração, o subsídio, entendeu? O valor deste novo modelo é, nominalmente, praticamente igual à soma do vencimento básico com as gratificações, mas a forma como ele se manifesta é diferente, e como ninguém questionou isso na justiça até agora, tá valendo.

Neste instante, o ministro Mercadante, atento ao interessante debate, pegou o celular, ligou para a presidenta Dilma, e disse:

- Presidenta, cancela o projeto do pré-sal que reserva mais verba para a Educação para daqui a 30 anos. Minas acaba de apresentar aqui e agora a melhor solução: como manter o mesmo com a aparência de mais. E nem será preciso esperar 30 anos. Já temos a fórmula pronta para salvar as prefeituras e os governos estaduais.

Diante da descoberta, o governo do Pará já pensa em congelar os salários até a chegada do pré-sal, no mesmo ritmo de Minas. Todos os outros estados se mostraram satisfeitíssimos com o desfecho da produtiva reunião e escolheram a representante de Minas para falar com a imprensa em nome de todos. O ministro do MEC retomou seu discurso sobre a distribuição de tablets, já que a questão salarial estaria resolvida para todo o sempre. E todos saíram dali felizes, diretamente para uma churrascaria, para um suculento rodízio, obviamente bancado com verbas da Educação.

E assim caminha o presente e o futuro das gerações de crianças, jovens e adultos do Brasil, que dependem de uma Educação pública de qualidade. Teriam antes que mudar a qualidade dos políticos que se dizem representantes do povo. Ou simplesmente abolir a representação e instalar uma forma direta de autogestão daquilo que os trabalhadores assalariados produzem. Pois se depender dessa elite brasileira, de diferentes cores partidárias, para valorizar os educadores, como meio essencial para se cumprir a constituição e oferecer ensino de qualidade para todos, estamos perdidos.

Um forte abraço a todos e força na luta! Até a nossa vitória!

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domingo, 18 de março de 2012

Chico Buarque cheio de amor em plena idade feliz!

O namoro do Chico Buarque com a cantora ruiva Thais Gulin rendeu para nós este lindo blues ESSA PEQUENA, cuja letra vai aí abaixo. Mas rendeu também a interessante crônica UM TEMPO SEM NOME da escritora Rosiska Darcy de Oliveira sobre “o novo conceito de envelhecer”. Também segue abaixo.

Essa Pequena

Chico Buarque

Meu tempo é curto, o tempo dela sobra

Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora

Temo que não dure muito a nossa novela, mas

Eu sou tão feliz com ela

Meu dia voa e ela não acorda

Vou até a esquina, ela quer ir para a Flórida

Acho que nem sei direito o que é que ela fala, mas

Não canso de contemplá-la

Feito avarento, conto os meus minutos

Cada segundo que se esvai

Cuidando dela, que anda noutro mundo

Ela que esbanja suas horas ao vento, ai

Às vezes ela pinta a boca e sai

Fique à vontade, eu digo, take your time

Sinto que ainda vou penar com essa pequena, mas

O blues já valeu a pena

Um tempo sem nome

Rosiska Darcy de Oliveira, O Globo, 21/01/12

Com seu cabelo cinza, rugas novas e os mesmos olhos verdes, cantando madrigais para a moça do cabelo cor de abóbora, Chico Buarque de Holanda vai bater de frente com as patrulhas do senso comum. Elas torcem o nariz para mais essa audácia do trovador. O casal cinza e cor de abóbora segue seu caminho e tomara que ele continue cantando “eu sou tão feliz com ela” sem encontrar resposta ao “que será que dá dentro da gente que não devia”.

Afinal, é o olhar estrangeiro que nos faz estrangeiros a nós mesmos e cria os interditos que balizam o que supostamente é ou deixa de ser adequado a uma faixa etária. O olhar alheio é mais cruel que a decadência das formas. É ele que mina a autoimagem, que nos constitui como velhos, desconhece e, de certa forma, proíbe a verdade de um corpo sujeito à impiedade dos anos sem que envelheça o alumbramento diante da vida .

Proust, que de gente entendia como ninguém, descreve o envelhecer como o mais abstrato dos sentimentos humanos. O príncipe Fabrizio Salinas, o Leopardo criado por Tommasi di Lampedusa, não ouvia o barulho dos grãos de areia que escorrem na ampulheta. Não fora o entorno e seus espelhos, netos que nascem, amigos que morrem, não fosse o tempo “um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho“, segundo Caetano, quem, por si mesmo, se perceberia envelhecer? Morreríamos nos acreditando jovens como sempre fomos.

A vida sobrepõe uma série de experiências que não se anulam, ao contrário, se mesclam e compõem uma identidade. O idoso não anula dentro de si a criança e o adolescente, todos reais e atuais, fantasmas saudosos de um corpo que os acolhia, hoje inquilinos de uma pele em que não se reconhecem. E, se é verdade que o envelhecer é um fato e uma foto, é também verdade que quem não se reconhece na foto, se reconhece na memória e no frescor das emoções que persistem. É assim que, vulcânica, a adolescência pode brotar em um homem ou uma mulher de meia-idade, fazendo projetos que mal cabem em uma vida inteira.

Essa doce liberdade de se reinventar a cada dia poderia prescindir do esforço patético de camuflar com cirurgias e botoxes — obras na casa demolida — a inexorável escultura do tempo. O medo pânico de envelhecer, que fez da cirurgia estética um próspero campo da medicina e de uma vendedora de cosméticos a mulher mais rica do mundo, se explica justamente pela depreciação cultural e social que o avançar na idade provoca.

Ninguém quer parecer idoso, já que ser idoso está associado a uma sequência de perdas que começam com a da beleza e a da saúde. Verdadeira até então, essa depreciação vai sendo desmentida por uma saudável evolução das mentalidades: a velhice não é mais o que era antes. Nem é mais quando era antes. Os dois ritos de passagem que a anunciavam, o fim do trabalho e da libido, estão, ambos, perdendo autoridade. Quem se aposenta continua a viver em um mundo irreconhecível que propõe novos interesses e atividades. A curiosidade se aguça na medida em que se é desafiado por bem mais que o tradicional choque de gerações com seus conflitos e desentendimentos. Uma verdadeira mudança de era nos leva de roldão, oferecendo-nos ao mesmo tempo o privilégio e o susto de dela participar.

A libido, seja por uma maior liberalização dos costumes, seja por progressos da medicina, reclama seus direitos na terceira idade com uma naturalidade que em outros tempos já foi chamada de despudor. Esmaece a fronteira entre as fases da vida. É o conceito de velhice que envelhece. Envelhecer como sinônimo de decadência deixou de ser uma profecia que se autorrealiza. Sem, no entanto, impedir a lucidez sobre o desfecho.

”Meu tempo é curto e o tempo dela sobra”, lamenta-se o trovador, que não ignora a traição que nosso corpo nos reserva. Nosso melhor amigo, que conhecemos melhor que nossa própria alma, companheiro dos maiores prazeres, um dia nos trairá, adverte o imperador Adriano em suas memórias escritas por Marguerite Yourcenar.

Todos os corpos são traidores. Essa traição, incontornável, que não é segredo para ninguém, não justifica transformar nossos dias em sala de espera, espectadores conformados e passivos da degradação das células e dos projetos de futuro, aguardando o dia da traição. Chico, à beira dos setenta anos, criando com brilho, ora literatura , ora música, cantando um novo amor, é a quintessência desse fenômeno, um tempo da vida que não se parece em nada com o que um dia se chamou de velhice. Esse tempo ainda não encontrou seu nome. Por enquanto podemos chamá-lo apenas de vida.

ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA é