quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Euler: "A cruz que carregamos"

quarta-feira, 24 de novembro de 2010
A cruz que carregamos...


Cantoria 1 - Semente de Adão (C.Fernando - G. Azevedo) / Viramundo (Capinan - G.Gil)

Peguei emprestado a última frase do comentário do nosso colega e amigo professor João Paulo, que transcrevo a seguir, para dar o título deste post. Ao final, farei um breve comentário. Fiquem agora com as sábias palavras do nosso colega João Paulo.

"João Paulo Ferreira de Assis:

Prezado amigo Professor Euler

São problemas para nós a carga horária que obriga o professor detentor de dois cargos a praticamente morar na escola, como a indefinição sobre qual a melhor atitude a tomar. Eu com 25 anos de magistério (na verdade menos, pois fiquei o 2º semestre de 1988 sem lecionar, bem como fevereiro e março de 1987)entendo que devo continuar na atual carreira, pois pelo que sei, a opção pelas 30 horas só será possível se houver turmas disponíveis. E o aumento anual, também só se dará se houver disponibilidade.

Enquanto ficamos nesta indefinição, a gente vai morrendo aos pouquinhos com o desinteresse dos alunos, a indisciplina e outras coisas mais. Penso que esses problemas disciplinares tem a ver com a cultura de violência que os alunos presenciam não só em suas casas mas na comunidade. Certa vez eu cheguei numa sala, para lecionar o quarto horário. Tinha havido durante o recreio uma batalha de papel. Uma das bolas estava sobre a mesa do professor. Eu a desenrolei e vi um texto escrito. Uma professora havia dado como atividade que os alunos narrassem sua história de vida. O aluno rasgara a parte onde constava seu nome. E ali estava uma história de vida muito triste. Ele contava as surras que a mãe lhe dava quando ele ia nadar numa lagoa que uma empresa reservara para guardar os rejeitos do processo de fabricação do cimento. Narrou também a sua descoberta de que a mãe cometia adultério com um vizinho. Depois narrou a separação de seus pais, e sua vida errante junto ao pai, à avó e ao irmão. Por fim lamentou-se de que a mãe não se interessa por ele. Fiquei pensando que uma história de vida dessas bem que poderia justificar uma resistência à autoridade do professor, que assim leva as sobras por culpas que cabem a outros. Francamente era preciso que no quadro das escolas tivesse psicólogos que atenderiam esses alunos. Esta minha teoria de que há uma ligação entre os fatos, foi comprovada por um exemplo que eu ouvi num programa policial. Eu varava as madrugadas ouvindo a Afanásio Jazadi, na Rádio Capital, de São Paulo. Certo dia a PM paulista prendeu um estuprador. O repórter policial foi entrevistá-lo aos gritos, como ele sempre fazia com os bandidos. O bandido falando baixo narrou sua história triste. A mãe era prostituta e não tendo com quem deixá-lo, permitia que ele, criança, presenciasse o atendimento dela aos clientes. Aos 16 anos ele perdeu contato com ela. E em toda mulher ele projetava a figura materna, e estuprava por puro ódio. Eu percebi nas últimas perguntas do repórter que este se compadecera daquele infeliz, que provavelmente foi assassinado no cárcere. Eu me convenci que um passado de violências sofridas possa fazer um aluno se tornar francamente insubordinado. Que pesada cruz nós temos de carregar!

Saudações, João Paulo Ferreira de Assis. "

* * *

Comentário do Blog: As análises e reflexões do nosso colega João Paulo nos fazem pensar sobre muitas coisas. Sobre como uma sociedade injusta (re) produz uma sociabilidade marcada por agressões às pessoas desde a infância, preconceitos os mais variados e condições de vida desumanas.

Toda esta realidade acaba respingando como tragédia no colo dos professores, que na maioria das vezes se sentem fragilizados pelas condições de trabalho, pelos baixos salários e pela falta de estímulo.

São relatos de vida que se encontram em pedaços num espaço que tem a grandiosa tarefa de "recuperar", salvar, educar para uma vida toda, as muitas gerações maltratadas por sistemas cuja dinâmica está voltada para favorecer a alguns poucos.

É verdade também que, para além das nossas cruzes - e o(a) educador(a) parece carregar as mais pesadas cruzes do planeta - encontramos também realidades que nos fazem orgulhar da atividade que escolhemos. Muita gente encontrou caminhos diferentes daqueles com os quais conviveram numa infância sofrida. Mais do que testemunhos escritos, todos os dias eu encontro com ex-alunos que exercem hoje as mais diferentes profissões - quase sempre com salários melhores que os nossos, claro - e com grandes sonhos pela frente.

Não nos resta outro caminho senão continuar a nossa luta, a nossa crítica cotidiana, as nossas cobranças e a nossa permanente busca por uma sociedade mais justa, o que passa pela conquista de uma Educação pública de qualidade para todos. Concordo plenamente com o colega João Paulo quando ele reclama a ausência de psicólogos - diria mais: assistentes sociais, médicos, músicos, etc. - nas escolas.

O espaço da escola pública é hoje talvez a grande oportunidade para uma recuperação tardia das muitas vidas abandonadas e despedaçadas por sistemas voltados para moer os nossos sonhos, especialmente os dos de baixo.

Daí que a Educação pública, e os educadores, e os alunos, precisam ser tratados com carinho, com atenção, com respeito. Somos todos vítimas de um desencontro social provocado pela reprodução sistêmica do capital. Mas, altivos, permanecemos de pé, a cobrar e a lutar pelos espaços que nos foram negados ou expropriados pelos de cima. E que cada estudante, do pequeno guri da escola infantil aos adultos das EJAs e similares, tenha a oportunidade de aprender a pensar criticamente o seu meio e virar o mundo ao avesso, transformando-o, qual sina proferida na cantiga Viramundo, "em festa, trabalho e pão".

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