quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Jornal "O Tempo": Filhos não devem presenciar violência entre os pais

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Presenciar brigas entre os pais causa traumas
Sociabilidade e aprendizado das crianças podem ficar comprometidos
Publicado no Jornal OTEMPO em 22/11/2010


CAROLINA COUTINHO



Os olhos pequenos, arregalados, assistiram à troca de ofensas entre os pais. Muitas vezes, o garoto chorou ao tentar intervir nas agressões familiares. Até que um dia, ainda tão criança, G., 7, viveu o seu maior pesadelo: viu a mãe ser baleada com 11 tiros pelo próprio pai. Por sorte, a mulher sobreviveu, mas a lembrança vai estar para sempre com o menino.

Ele não é o único. Todos os dias - em menores ou maiores proporções -, crianças convivem com a violência doméstica. As estatísticas são assustadoras. Segundo a Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), do governo federal, 70% dos crimes passionais, de janeiro a setembro deste ano, foram presenciados pelos filhos das vítimas.

No mesmo período, 552.034 mulheres passaram por situações de violência, na maioria, casos relacionados a cárcere privado, lesão corporal e ameaças de morte. Em Belo Horizonte, de acordo com um levantamento do Centro de Pesquisas em Segurança Pública da PUC-Minas, a cada cinco dias, é registrado um assassinato, tendo como motivação a paixão obsessiva e o ciúme.

Seja na forma física, verbal ou psicológica, a violência entre casais é um excesso para a criança, como explica a psicanalista Maria Teresa de Melo Carvalho, professora da Universidade Federal de Minas Gerais.

"Está além da capacidade dos menores absorver e entender o que se passa. A briga se manifesta nos menores como forma de distúrbios, traumas e mais violência. No mínimo, garotos que viveram esses traumas tornam-se desorganizados em relação aos seus sentimentos e comportamentos, comprometendo sua sociabilidade e aprendizagem", afirmou.

Impacto. Efeitos nocivos como os relatados pela psicanalista já são claramente visíveis no comportamento de G.. Segundo a avó dele, Maria Dicinéia Cândido, 55, três meses depois de presenciar a mãe - Regiane Dicinéia Cândido, 35 - sendo baleada pelo pai - o policial civil José Duarte, 45 -, o garoto demonstra mau humor e agressividade.

"O comportamento dele oscila muito. Tem dia que ele está quieto e calado, mas em outros fica muito nervoso. Foram anos vendo o pai ser violento com a mãe e hoje ele reproduz essa violência. Ele está na terapia desde julho", desabafa.

O menino hoje voltou ao convívio da mãe que ficou meses internada e precisa usar uma cadeira de rodas para se locomover. "Sozinhas, eu e a mãe dele não conseguimos ajudá-lo. O apoio de um profissional tem sido muito importante", diz a avó.

Fragilidade. Segundo a especialista da UFMG, o efeito do convívio com brigas também pode ser contrário, mas igualmente prejudicial. "A história de violência gerando violência é verdadeira. Mas, em alguns casos, pode gerar passividade, medo, inibição. Sendo assim, a criança não consegue se expressar naturalmente. Ela se torna mais frágil do que o normal. Por isso, aconselho a não brigarem na frente dos filhos", enfatiza.
Ocorrências
Violência presenciada em casa é reproduzida na escola

O Estatuto da Criança e do Adolescente deixa claro que é dever de todos manter menores longe de qualquer situação vexatória e ou humilhante. Mas, segundo o conselheiro tutelar Ronaldo Dias, da regional Ressaca, em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, é comum ouvir relatos de garotos e garotas que presenciaram as mães sendo espancadas pelos pais.

A consequência mais comum da exposição à violência, de acordo com ele, são as reproduções das brigas dentro do ambiente escolar. "Acontece muito. O professor aciona os conselhos tutelares por causa da violência dos alunos. Por isso, fazemos um trabalho de orientação nas escolas sobre essas questões, pois são das instituições de ensino que chega grande parte da nossa demanda. Ao presenciar a violência em casa, o jovem ou a criança a reproduz contra os colegas na sala de aula", explica Dias.

Nesses casos, a atuação do órgão, de acordo com o conselheiro, é conversar com a criança e, principalmente, orientar seus responsáveis. Em casos mais graves, outras instâncias da assistência social são acionadas.

"Num primeiro contato, não é fácil para crianças ou jovens falarem sobre a violência que presenciam dentro de casa. Mas, depois que eles percebem que o conselho é um local de proteção da criança, eles se abrem e contam suas dores". (CCo)
FOTO: Adrian / stockxper
Tendência. Segundo especialista, criança que convive com a violência torna-se um adulto com comportamento explosivo
Adrian / stockxper
Tendência. Segundo especialista, criança que convive com a violência torna-se um adulto com comportamento explosivo
Um drama de várias gerações

Apesar de ter presenciado durante toda a infância o comportamento agressivo do pai com a mãe, Virgínia (nome fictício) escapou de se tornar uma adulta desequilibrada e violenta, como é a tendência de quem passa por essa situação. A salvação, segundo sua própria conclusão, foi o amor e a bondade ilimitados da mãe, que equilibraram sua vida. Mesmo assim, foi impossível sair ilesa da rotina de desarmonia no lar. Sequelas foram inevitáveis e são vividas até hoje.

Aos 35 anos, bem-sucedida na profissão e mãe dedicada de um garoto de 6 anos, Virgínia é uma mulher ansiosa que, muitas vezes, teme receber pessoas em sua casa. A explicação para tais sensações são as lembranças das brigas do pai na frente das visitas.

"Às vezes, eu levava uma coleguinha em casa, mas morria de vergonha por causa das brigas que meu pai armava. Em festas e datas comemorativas, como aniversários, por exemplo, ele sempre arrumava confusão. O alvo, na maioria das vezes, era a minha mãe, mas eu e meus irmãos também sofríamos as consequências", lembra.

Hoje, quando recebe alguém na casa onde mora, no bairro Gutierrez, região Oeste da capital, Virgínia se sente ansiosa e teme que algo de ruim ou errado possa acontecer. "Quando vou para alguma festa de família, levo um tempo até relaxar e ver que está tudo bem. Ficaram muitas marcas, que tenho consciência serem frutos dos vexames que passei quando pequena", relatou.

O pai de Virgínia, por sua vez, também tem histórico de violência familiar. Quando pequeno, seus pais brigavam muito na presença dos filhos e, de tão insustentável e agressiva a relação, chegaram a se separar mesmo em uma época em que o divórcio ainda era alvo de preconceito.

Tudo isso mostra que, mesmo a criança não sendo o foco da violência familiar, o simples fato de ela presenciar a ação já lhe acarreta inúmeros prejuízos psicológicos e comportamentais. O doutor em psicologia Orestes Diniz Neto, especialista em terapia de família e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirma que as crianças aprendem pela imitação e que formam sua personalidade pela interação que têm com os adultos. Dessa forma, se a formação da criança for em um ambiente violento, a tendência é que ela se torne violenta.

"Isso se chama transmissão geracional da violência. O que as crianças sofrem, passivamente, elas tendem a repetir ativamente. Se ela presencia a violência, tende a repeti-la", esclarece. Segundo o especialista, uma criança que convive com a agressividade reage a qualquer tipo de situação difícil com uma irritabilidade mais intensa, um comportamento mais explosivo e com maior dificuldade de negociar. "As pessoas não pensam nessas consequências, que são muito negativas na vida das crianças e das futuras gerações", afirma.

Saiba onde e como denunciar:
O Disque Direitos Humanos foi implantado em 2000 em Minas.

Faz atendimento telefônico, monitoramento de denúncias de violação de direitos humanos.
Todas as denúncias são encaminhadas para conselhos responsáveis, delegacias especializadas, promotorias e redes de assistência.

O serviço é gratuito e é garantido o sigilo do denunciante. Para denunciar, basta ligar para o número 0800-31 11 19 de qualquer lugar do Estado.
Gota d’água
"Ele quebrou o carrinho que mais gostava"

João Rocha (nome fictício) e sua mulher perceberam a tempo o efeito nocivo de suas brigas dentro de casa. O filho do casal, até os 4 anos, estava sempre por perto enquanto eles discutiam. E foi nessa idade que a criança começou a dar os primeiros sinais de violência.

O pai conta que o menino, quando contrariado ou em situações em que era chamado atenção, respondia com revolta. "Uma vez, quando eu chamei sua atenção, ele quebrou o carrinho que mais gostava, de tanta raiva que sentiu. Depois desse dia, percebemos que nós estávamos passando esse jeito violento para ele. Daí em diante, eu e minha mulher paramos de brigar na frente da criança. Nos separamos, mas nunca mais discutimos quando ele está perto".

Hoje, com 14 anos, o garoto, diz o pai, é tranquilo e não demonstra sinal de violência. "Percebemos a tempo o mal que estávamos causando a ele. Outra conclusão que tirei dessa história é que os pais têm muita responsabilidade na formação da personalidade do filho", disse Rocha. (CCo)
Minientrevista
Orestes Diniz Neto Psicólogo, especialista em terapia de família

O que pode ser entendido como violência doméstica? Todo ato físico ou psicológico de coação moral. A violência tem graus e níveis diferentes e pode acontecer até silenciosamente. Uma forma de olhar pode ser muito violenta.

Quais são os efeitos da violência entre os pais ou responsáveis nas crianças? As crianças da nossa espécie aprendem pela imitação. Quanto mais a criança é exposta a essas situações, mais chances ela tem de repetí-la. Então, ela aprende a violência e a legitima para utilizá-la em sua vida. As pessoas que passam por situações de violência podem parecer normais, mas elas tendem a ser muito mais irritáveis que as demais.

A violência ainda é vista como uma forma pedagógica? Sim. Mas não há nenhuma necessidade de educar uma criança utilizando a violência. O problema é que muitos pais ainda pensam o contrário.

O que fazer para impedir que a criança presencie a violência? A primeira coisa a se fazer é tirar a criança do meio onde a confusão ocorre. Caso isso não seja possível, é indicado a intervenção do conselho tutelar e, em casos extremos, até da polícia. (CCo)

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