domingo, 18 de julho de 2010

RÉQUIEM PARA CLARICE LISPECTOR

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“Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que alguém está segurando a minha mão. Oh, pelo menos no começo, só no começo. Logo que puder dispensá-la irei sozinha. Por enquanto preciso segurar esta tua mão - mesmo que não consiga inventar teu rosto e teus olhos e tua boca. Mas embora decepada, esta mão não me assusta. A invencão dela vem de tal idéia de amor como se a mão estivesse realmente ligada a um corpo que, se não vejo, é por incapacidade de amar mais. Não estou à altura de imaginar uma pessoa inteira porque não sou uma pessoa inteira."
[A Paixão Segundo G.H.]
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Como? Mas como é que eu escrevi nove livros e em nenhum deles eu vos disse: Eu vos amo? Eu amo quem tem paciência de esperar por mim e pela minha voz que sai através da palavra escrita. Sinto-me de repente tão responsável. Porque se sempre eu soube usar a palavra - embora às vezes gaguejando - então sou uma criminosa se não disser, mesmo de um modo sem jeito, o que quereis ouvir de mim. O que será que querem ouvir de mim? Tenho o instrumento na mão e não sei tocá-lo, eis a questão. Que nunca será resolvida. Por falta de coragem? Devo por contenção ao meu amor, devo fingir que não sinto o que sinto: amor pelos outros?Para salvar esta madrugada de lua cheia eu vos digo: eu vos amo.Não dou pão a ninguém, só sei dar umas palavras. E dói ser tão pobre. Estava no meio da noite sentada na sala de minha casa, fui ao terraço e vi a lua cheia - sou muito mais lunar que solar. E uma solidão tão maior que o ser humano pode suportar, esta solidão me toma se eu não escrever eu vos amo. Como explicar que me sinto mãe do mundo? Mas dizer "eu vos amo" é quase mais do que posso suportar! Dói. Dói muito ter um amor impotente. Continuo porém a esperar.
["Adeus, vou-me embora!" de 20/04/1968 em A Descoberta do Mundo]
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"Tudo lhe servia de partida. Um pássaro que voava, lhe lembrava terras desconhecidas, fazia respirar seu velho sonho de fuga. De pensamento a pensamento, inconscientemente dirigido para o mesmo fim, chegava à noção de sua covardia, revelada não só nesse constante desejo de fugir, de não se unir às coisas para não lutar por elas, como na incapacidade de realizá-lo, já que o concebia, espedaçando sem piedade o humilhante bom senso que lhe prendia o vôo. Esse dueto consigo mesmo era o reflexo de sua essência, descobria, e por isso continuaria por toda a sua vida..."
Obsessão, in A Bela e a Fera, Clarice Lispector
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NO ENTERRO DE CLARICE LISPECTOR, 200 PESSOAS

Publicado na Folha de S.Paulo, segunda-feira, 12 de dezembro de 1977

Duzentas pessoas compareceram ao enterro da escritora Clarice Lispector no Cemitério Comunal Israelita, no Caju (RIO). Seu corpo, velado desde sexta-feira no oratório do cemitério, foi colocado no túmulo 123, da fila G. depois de ter sido purificado por quatro mulheres da Irmandade Sagrada "Hevra Kadisha", de acordo com o ritual judaico. O caixão fechado e coberto apenas por um manto negro com uma estrela de David, bordada, foi visitado pelos escritores Rubem Braga, Fernando Sabino, Nélida Piñon e José Rubem Fonseca, além do embaixador Vasco Leitão da Cunha.

Clarice, um enterro simples.

O corpo de Clarice Lispector ficou no cemitério Comunal Israelita
Numa cerimonia simples, sem discursos, na qual a família chegou até a dispensar a presença do grão-rabino Henrique Lemle, substituido pelo cantor-mór Joseph Aronsohn, a escritora e jornalista Clarice Lispector - ela completaria anteontem 53 anos de idade - foi sepultada ontem no Cemitério Comunal Israelita, no Caju. Cerca de 200 pessoas, entre parentes e amigos, acompanharam o corpo - velado desde sexta-feira no oratório do Cemitério - até o túmulo 123, da fila G, onde ao lado, repousa o corpo do deputado Francisco Silbert Sobrinho.
Antes de ser enterrado o corpo da escritora, de acordo com o ritual judaico, foi purificado, sendo lavado, interna e externamente, por quatro mulheres da Irmandade sagrada "Havra Kadisha". No oratório, o caixão, fechado, coberto apenas por um manto negro com uma Estrela de David bordada em prateado foi visitado pelos escritores Rubem Braga, Fernando Sabino, Nélida Piñon e José Rubem Fonseca e pelo embaixador Vasco Leitão da Cunha. Nélida Piñon e José Rubem Fonseca acompanharam Clarice nos seu últimos momentos no Hospital da Lagoa, onde a escritora morreu vitimada por um câncer.
Ainda no oratório, precisamente às 11 horas, o substituto do rabino deu início à liturgia lendo, em aramaico, o Salmo 91, do Artigo Testamento, seguido de cânticos em hebraico e de uma leitura, agora em português, de alguns Salmos. Ali, antes do caixão ser conduzido à sepultura, Joseph Aronsohn ainda fez a despedida do corpo, rezando o "El Molê Rachamim". De lá o caixão seguiu até o túmulo 123, onde o filho de Clarice, Paulo Gurgel Valente (o filho Pedro não compareceu por se encontrar com o pai, o embaixador Mauri Gurgel Valente, em Montevidéu) chorou, sendo constantemente amparado pelas tias Elvira e Tânia, também escritoras.
A beira do túmulo, Joseph Aronsohn, tendo ao lado Pedro Gurgel Valente, rezou o "Kadish" - oração fúnebre -, enquanto a última homenagem a Clarice Lispector era prestada com o lançamento de três pás de terra sobre o caixão, indicando que "da terra viestes, à terra voltarás". A cerimônia foi encerrada com o substituto do rabino pedindo aos presentes que se voltassem para a direita, em direção ao Oriente, indicando o sentido de Jerusalém.
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"Será essa história um dia o meu coágulo? Que sei eu. Se há veracidade nela - e é claro que a história é verdadeira embora inventada - que cada um a reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro - existe a quem falte o delicado essencial."
In A Hora da Estrela, Clarice Lispector
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"Quero escrever puro movimento"

Isto não é um lamento, é um grito de ave de rapina. Irisada e intranqüila. O beijo no rosto morto.
Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos, porque neles vivemos.
De repente as coisas não precisam mais fazer sentido. Satisfaço-me em ser. Tu és? Tenho certeza que sim. O não sentido das coisas me faz ter um sorriso de complacência. Decerto tudo deve estar sendo o que é.
Hoje está um dia de nada. Hoje é zero hora. Existe por acaso um número que não é nada? que é menos que zero? que começa no que nunca começou porque sempre era? e era antes de sempre? Ligo-me a esta ausência vital e rejuvenesço-me todo, ao mesmo tempo contido e total. Redondo sem início e sem fim, eu sou o ponto antes do zero e do ponto final. Do zero ao infinito vou caminhando sem parar. Mas ao mesmo tempo tudo é tão fugaz. Eu sempre fui e imediatamente não era mais. O dia corre lá fora à toa e há abismos de silêncio em mim. A sombra de minha alma é o corpo. O corpo é a sombra de minha alma. Este livro é a sombra de mim. Peço vênia para passar. Eu me sinto culpado quando não vos obedeço. Sou feliz no hora errada. Infeliz quando todos dançam. Me disseram que os aleijados se rejubilam assim como me disseram que os cegos se alegram. É que os infelizes se compensam.

Nunca a vida foi tão atual como hoje: por um triz é o futuro. Tempo para mim significa a desagregação da matéria. O apodrecimento do que é orgânico como se o tempo tivesse como um verme dentro de um fruto e fosse roubando a este fruto toda a sua polpa. O tempo não existe. O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o tempo em si não existe. Ou existe imutável e nele nos transladamos. O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta. Então – para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa – eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável minuto. E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espécie. Quero viver muitos minutos num só minuto. Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a idéia de imobilidade eterna. Na eternidade não existe o tempo. Noite e dia são contrários porque são o tempo e o tempo não se divide. De agora em diante o tempo vai ser sempre atual. Hoje é hoje. Espanto-me ao mesmo tempo desconfiado por tanto me ser dado. E amanhã eu vou Ter de novo um hoje. Há algo de dor e pungência em viver o hoje. O paroxismo da mais fina e extrema nota de violino insistente. Mas há o hábito e o hábito anestesia. O aguilhão de abelha do dia florescente de hoje. Graças a Deus, tenho o que comer. O pão nosso de cada dia.

Eu queria escrever um livro. Mas onde estão as palavras? esgotaram-se os significados. Como surdos e mudos comunicamo-nos com as mãos. Eu queria que me dessem licença para eu escrever ao som harpejado e agreste a sucata da palavra. E prescindir de ser discursivo. Assim: poluição.

Escrevo ou não escrevo?

Saber desistir. Abandonar ou não abandonar – esta é muitas vezes a questão para um jogador. A arte de abandonar não é ensinada a ninguém. E está longe de ser rara a situação angustiosa em que devo decidir se há algum sentido em prosseguir jogando. Serei capaz de abandonar nobremente? ou sou daqueles que prosseguem teimosamente esperando que aconteça alguma coisa? como, digamos, o próprio fim do mundo? ou seja lá o que for, como a minha morte súbita, hipótese que tornaria supérflua a minha desistência?

Eu não quero apostar corrida comigo mesmo. Um fato. O que é que se torna um fato? Devo-me interessar pelo acontecimento? Será que desço tanto a ponto de encher as páginas com informações sobre os "fatos"? Devo imaginar uma história ou dou largas à inspiração caótica? Tanta falsa inspiração. E quando vem a verdadeira e eu não tomo conhecimento dela? Será horrível demais querer se aproximar dentro de si mesmo do límpido eu? Sim, e é quando o eu passa a não existir mais, a não reivindicar nada, passa a fazer parte da árvore da vida – é isso que luto por alcançar. Esquecer-se de si mesmo e no entanto viver tão intensamente.

Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto - e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as palavras que digo escondem outras - quais? talvez as diga. Escrever é uma pedra lançada no poço fundo.

Meditação leve e terna sobre o nada. Escrevo quase que totalmente liberto de meu corpo. É como se este estivesse em levitação. Meu espírito está vazio por causa de tanta felicidade. Estou tendo uma liberdade íntima que só se compara a um cavalgar sem destino pelos campos afora. Estou livre de destino. Será o meu destino alcançar a liberdade? não há não há uma ruga no meu espírito que se espraia em leves espumas. Não estou mais acossado. Isto é a graça.

Estou ouvindo música. Debussy usa as espumas do mar morrendo na areia, refluindo e fluindo. Bach é matemático. Mozart é o divino impessoal. Chopin conta a sua vida mais íntima. Schoenberg, através de seu eu, atinge o clássico eu de todo o mundo. Beethoven é a emulsão humana em tempestade procurando o divino e só o alcançando na morte. Quanto a mim, que não peço música, só chego ao limiar da palavra nova. Sem coragem de expô-la. Meu vocabulário é triste e às vezes wagneriano-polifônico-paranóico. Escrevo muito simples e muito nu. Por isso fere. Sou uma paisagem cinzenta e azul. Elevo-me na fonte seca e na luz fria.

Quero escrever esquálido e estrutural como o resultado de esquadros, compassos e agudos ângulos de estreito enigmático triângulo.

"Escrever" existe por si mesmo? Não. É apenas o reflexo de uma coisa que pergunta. Eu trabalho com o inesperado. Escrevo como escrevo sem saber como e por quê - é por fatalidade de voz. O meu timbre sou eu. Escrever é uma indagação. É assim:?

Será que estou me traindo? será que estou desviando o curso de um rio? Tenho que ter confiança nesse rio abundante. Ou será que ponho uma barreira no curso do rio? Tento abrir as comportas, quero ver a água jorrar com ímpeto. Quero que cada frase deste livro seja um clímax.

Eu tenho que ter paciência pois os frutos serão surpreendentes...

Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres - Clarice Lispector
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É para lá que eu vou...
Para além da orelha existe um som, à extremidade do olhar um aspecto, às pontas dos dedos um objeto - é para lá que eu vou.
À ponta do lápis o traço.
Onde expira um pensamento está uma idéia, ao derradeiro hálito de alegria uma outra alegria, à ponta da espada a magia - é para lá que eu vou.
Na ponta dos pés o salto.
Parece a história de alguém que foi e não voltou - é para lá que eu vou.
Ou não vou? Vou, sim. E volto para ver como estão as coisas. Se continuam mágicas. Realidade? eu vos espero. E para lá que eu vou.
Na ponta da palavra está a palavra. Quero usar a palavra "tertúlia" e não sei aonde e quando. À beira da tertúlia está a família. À beira da família estou eu. À beira de eu estou mim. É para mim que eu vou. E de mim saio para ver. Ver o quê? ver o que existe. Depois de morta é para a realidade que vou. Por enquanto é sonho. Sonho fatídico. Mas depois - depois tudo é real. E a alma livre procura um canto para se acomodar. Mim é um eu que anuncio.
Não sei sobre o que estou falando. Estou falando de nada. Eu sou nada. Depois de morta engrandecerei e me espalharei, e alguém dirá com amor meu nome.
É para o meu pobre nome que vou.
E de lá volto para chamar o nome do ser amado e dos filhos. Eles me responderão. Enfim terei uma resposta. Que resposta? a do amor. Amor: eu vos amo tanto. Eu amo o amor. O amor é vermelho. O ciúme é verde. Meus olhos são verdes. Mas são verdes tão escuros que na fotografia saem negros. Meu segredo é ter os olhos verdes e ninguém saber.
À extremidade de mim estou eu. Eu, implorante, eu a que necessita, a que pede, a que chora, a que se lamenta. Mas a que canta. A que diz palavras. Palavras ao vento? que importa, os ventos as trazem de novo e eu as possuo.
Eu à beira do vento. O morro dos ventos uivantes me chama. Vou, bruxa que sou. E me transmuto.
Oh, cachorro, cadê tua alma? está à beira de teu corpo? Eu estou à beira de meu corpo. E feneço lentamente.
Que estou eu a dizer? Estou dizendo amor. E à beira do amor estamos nós.
in "Onde estivestes de noite" - 7ª Ed. - Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994.
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"De Ulisses ela aprendera a ter coragem de ter fé – muita coragem, fé em quê? Na própria fé, que a fé pode ser um grande susto, pode significar cair no abismo, Lóri tinha medo de cair no abismo e segurava-se numa das mãos de Ulissses enquanto a outra mão de Ulisses empurrava-a para o abismo - em breve ela teria que soltar a mão menos forte do que a que a empurrava, e cair, a vida não é de se brincar porque em pleno dia se morre. A mais premente necessidade de um ser humano era tornar-se um ser Humano."
Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres.
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Um vislumbre do fim

“Uma vez eu irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez. O espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos com recomendações. Não será difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo. Não será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai. Minha alma eu a deixarei, qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem, olhando através de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de olhos de gato ou de cão. De tigre, eu preferiria. Meu corpo, esse serei obrigada a levar. Mas dir-lhe-ei antes: vem comigo, como única valise, segue-me como um cão. E irei à frente, sozinha, finalmente cega para os erros do mundo, até que talvez encontre no ar algum bólide que me rebente. Não é a violência que eu procuro, mas uma força ainda não classificada mas que nem por isso deixará de existir no mínimo silêncio que se locomove. Nesse instante há muito que o sangue já terá desaparecido. Não sei como explicar que, sem alma, sem espírito, e um corpo morto — serei ainda eu, horrivelmente esperta. Mas dois e dois são quatro e isso é o contrário de uma solução, é beco sem saída, puro problema enrodilhado em si. Para voltar de ‘dois e dois são quatro’ é preciso voltar, fingir saudade, encontrar o espírito entregue aos amigos, e dizer: como você engordou! Satisfeita até o gargalo pelos seres que mais amo. Estou morrendo meu espírito, sinto isso, sinto...”
Textos extraídos do livro Aprendendo a viver, Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004.

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Em fevereiro de 1977, é contratada pelo jornal Última Hora para assinar uma crônica semanal. Nesse mesmo mês, Clarice concede sua última entrevista a Júlio Lerner, da TV Cultura de São Paulo, que só seria veiculada no dia 28 de dezembro. Coube a ele fazer a última entrevista dada a um veículo da grande imprensa pela nossa maior escritora de todos os tempos, Clarice Lispector. A entrevista é um momento de reflexão sobre o ofício do escritor.
Numa dada altura o entrevistador pergunta a Clarice se ela morreria se parasse de escrever, lembrando do famoso critério de Rainer Maria Rilke para saber se uma pessoa é escritora ou não.
Clarice responde da seguinte forma: "Eu acho que quando eu não escrevo, eu estou morta. muito duro o período entre um trabalho e outro, e ao mesmo tempo necessário para haver uma espécie de esvaziamento da cabeça para poder nascer alguma outra coisa. E se nascer ... tudo é tão incerto."
Mais à frente Lerner pergunta: normalmente que tipo de problema Clarice Lispector escritora traz a você? E ela responde: "Às vezes me considerar escritora me isola. Põem-me um rótulo. Às vezes as pessoas olham por esse rótulo. Tudo que eu digo, a maior bobagem, tudo é considerado ou uma coisa linda ou uma coisa boba, por conta de eu ser escritora. É por isso que eu não ligo muito para essa coisa de eu ser escritora, e dar entrevista, e tudo. É porque eu não sou isso."




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Sou uma iniciada sem seita.
Água Viva (1973)

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Os MISTÉRIOS DE CLARICE
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Quem escreveu: “Sou tão misteriosa que não me entendo”, não poderia mesmo ser facilmente interpretada. Contudo, até as mais impenetráveis esfinges se preocupam em oferecer, aqui e ali, pistas para a decifração de seus enigmas. Os textos de Clarice Lispector estão repletos de chaves e senhas, mesmo que estas porventura abram apenas caixas que escondem outras caixas, que escondem outras caixas que escondem outras caixas... As pistas que possibilitavam rastrear o caminho até seu eu profundo, Clarice concedia apenas aos familiares e aos amigos íntimos, mas poucos foram os que as seguiram até o fim, imbuídos da certeza de que não convém decifrar certos mistérios para não lhes embaçar o esplendor.
É difícil definir bem a própria irmã. Sempre fomos muito unidas, Clarice, Tânia e eu. Lembro-me que na infância, Clarice demonstrou logo ser independente, imaginativa e cheia de ternura. Tivemos todas uma vida muito agradável e feliz no Recife, e temos muitas saudades daqueles tempos. Embora casadas, e muitas vezes morando muito longe, estávamos sempre em contato umas com as outras, seja por carta, ou telefone. O que mais impressiona em Clarice não é fato de ser irmã, e ótima como sempre foi, mas como tornou-se mãe maravilhosa. Sua maior qualidade é ser absolutamente realizada em casa. Sua sensibilidade extremamente apurada capta as sutis reações dos filhos, atendendo-os e amparando-os em todas as situações. Fora isso, gosta de música, não é gulosa, e é sobretudo um tanto frugal. Não é política, e antes de tudo, é uma dedicadíssima dona de casa. Provando assim que uma mulher pode se realizar em dois setores diferentes em grande escala.
Clarice pela irmã, Elisa Lispector, em depoimento para a matéria Na Berlinda, publicada em março de 1963 em jornal carioca ainda não identificado [provavelmente Última Hora, a julgar pelo padrão gráfico]. Arquivo Clarice Lispector da Fundação Casa de Rui Barbosa.
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Clarice Lispector deixou de ser um nome para ser um fenômeno de nossa literatura. Um fenômeno com todas as características de um estado emocional, quero dizer, que as admiradoras de Clarice entram em transe à simples menção de seu nome. Não querem escrever artigos, querem fazer teses. Não querem notas, querem livros. E a grande autora de “Perto do Coração Selvagem” transformou-se num monstro sagrado, ela que desejava apenas ser uma escritora humana. Clarice para mim é a autora de “Perto do Coração Selvagem” e de “O Lustre”, dois romances que eu gostaria de ver mais lidos e estudados. Também é autora dos contos admiráveis de “Laços de Família”. E por que não a de “A maçã no escuro”? Não, não é esta nem a de “Cidade sitiada”. Alguns acham que eu tenho má vontade com esses dois romances. É que quase ninguém sabe que Clarice Lispector, com “O Lustre”, se tornou uma das minhas mais violentas paixões literárias. E quem ama exige.
Clarice Lispector pelo crítico e ensaísta, ganhador do Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, Fausto Cunha, em depoimento para a matéria Na Berlinda, publicada em março de 1963 em jornal carioca ainda não identificado [provavelmente Última Hora, a julgar pelo padrão gráfico]. Arquivo Clarice Lispector da Fundação Casa de Rui Barbosa.
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A partir do conhecimento que um amigo nos oferece começamos a compreender a necessidade de acumular tudo aquilo que — um receber explicando o que se entrega — nos ajuda a elaborar o que se é. Não há dádiva compensando-se como esta. Talvez por isto tenha-se pudor de explicar porque se admira, porque apenas se quer bem — quando, do outro lado, existente e integral, encontra-se Clarice Lispector, quando a linguagem acessível, onde nem mesmo se dispensa o embaraço, é tanto mais aquela que sem esclarecer sente-se constrangida apenas de reconhecer. A tarefa de identificar Clarice Lispector é extremamente penosa: não é fácil atribuir-lhe o que ela própria ultrapassa, ou retirar-lhe aquilo que tão naturalmente ela ilumina, na sua constante vigília de gente. Não sei confessar admiração que se abastece cada vez mais na sua parte humana, onde a generosidade, nobreza, bondade obrigam-me a aceitar apenas o que idealisticamente recebera crédito — pois certas aprendizagens são sempre imperfeitas na sua arrecadação. Nunca silenciei, no entanto, quanto ao seu desempenho de criadora. Considerei-a sempre, cada vez com um entusiasmo mais moderado e por isso mesmo menos sujeito a transformações, uma escritora insuperável, cuja categoria intelectual, para vergonha nossa, ainda não foi devida e necessariamente reconhecida. Embora dissesse pouco, apenas no silêncio vai-se ao encontro de um amigo.
Clarice Lispector pela escritora, jornalista e professora Nélida Piñon, em depoimento para a matéria Na Berlinda, publicada em março de 1963 em jornal carioca ainda não identificado [provavelmente Última Hora, a julgar pelo padrão gráfico]. Arquivo Clarice Lispector da Fundação Casa de Rui Barbosa.

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Na última fase da vida de Clarice surgiram outros, mas desde o princípio de sua vida literária fui de seus melhores amigos. Recentemente minha mulher, encarregada de uma exposição sobre ela na Casa de Cultura Laura Alvim, por ocasião dos dez anos de sua morte, ficou surpreendida ao verificar, consultando o acervo na Casa de Rui Barbosa, que a parte substancial da sua correspondência eram as cartas trocadas comigo ao longo da vida.Em 1943 recebi em Belo Horizonte um exemplar com dedicatória de um romance chamado Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector, que eu não sabia quem era. Também não sabia por recomendação de quem, talvez de Lúcio Cardoso.Fiquei deslumbrado com o livro.Rubem Braga conheceu Clarice em Nápoles durante a guerra — Maury Gurgel valente, seu marido, servia lá como diplomata. Quando ela veio ao Brasil, Rubem nos apresentou um ao outro.Fiquei deslumbrado com ela.Imediatamente nos tornamos amigos, de encontro diário, enquanto ela esteve aqui. Depois que deixou o país, a amizade continuou, intensamente vivida através de cartas, com uma freqüência ás vezes semanal, de 1946 a 1969 — durante 23 anos, portanto.Trocávamos idéias sobre tudo. Submetíamos nossos trabalhos um ao outro. Juntos reformulávamos nossos valores e descobríamos o mundo, ébrios de mocidade. Era mais do que a paixão pela literatura, ou de um pelo outro, não formulada, que unia dois jovens “perto do coração selvagem da vida”: o que transparece em nossas cartas, que reli recentemente, é uma espécie de pacto secreto entre nós dois, que nos fazia solidários ante o enigma que o futuro reservava para nosso destino de escritores.Tornei-me uma espécie de agente literário de Clarice no Brasil. Andava às voltas com editoras para os seus livros e encaminhando seus contos para revistas. Como Senhor, por exemplo, dirigida por Paulo Francis e Nahum Sirotsky, aos quais a apresentei, numa visita que fizemos à redação da revista, na rua Santa Clara, quando ela voltou ao Brasil.Levei-a também para os Cadernos de cultura, excelente coleção dirigida por Simeão Leal no Ministério da Educação. Saiu uma edição com o título Mistério em São Cristóvão e com um erro no nome da autora — Clarice com dois SS —, que por causa disso recolhemos, hoje uma raridade. Depois saiu outra, chamada Alguns contos, com o nome certo.Nos originais que ela me enviou de Washington, onde passou a morar, do romance A maçã no escuro, título que sugeri — ia se chamar A veia no pulso —, fiz 340 sugestões... Ela aceitou praticamente todas. Acabei sendo eu próprio seu editor, com Rubem Braga, na Editora do Autor e a Editora Sabiá.
Lembrança de Clarice pelo escritor, cronista, editor, produtor e diretor Fernando Sabino. Foi um dos mais fiéis e dedicados amigos de Clarice, empenhando-se em encontrar editor para seus livros e publicando-os depois em sua própria editora, a Sabiá. Texto extraído de O tabuleiro de damas. Trajetória do menino ao homem feito. Rio de Janeiro: Editora Record, 1988.
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Clarice Lispector é uma coisa escondida sozinha num canto, esperando, esperando. Clarice Lispector só toma café com leite. Clarice Lispector saiu correndo correndo no vento na chuva, molhou o vestido perdeu o chapéu. Clarice Lispector é engraçada! Ela parece uma árvore. Todas as vezes que ela atravessa a rua bate uma ventania, um automóvel vem, passa por cima dela e ela morre. Me escreva uma carta de 7 páginas, Clarice.
Clarice Lispector, por Fernando Sabino. O escritor já havia terminado sua longa carta, tendo, inclusive, assinado-a. Mas, parece que ao perceber que ainda resta meia folha disponível, lançou-se nesse improviso lírico, assinando-o ao final. Carta manuscrita, enviada de Nova York e datada de 10 de junho de 1946. Arquivo Clarice Lispector da Fundação Casa de Rui Barbosa.
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Porisso (sic) não te posso mandar nenhuma palavra animadora. Digo apenas que não concordo com você quando você diz que faz arte apenas porque “tem um temperamento infeliz e doidinho”. Tenho uma grande, uma enorme esperança em você e já te disse que você avançou na frente de nós todos, passou pela janela, na frente deles todos. Apenas desejo intensamente que você não avance demais para não cair do outro lado. Você tem de ser equilibrista até o fim da vida. E suando muito, apertando o cabo da sombrinha aberta, com medo de cair, olhando a distância do arame já percorrido e do arame a percorrer — e sempre tendo de exibir para o público um falso sorriso de calma e facilidade. Tem de fazer isso todos os dias, para os outros como se na vida não tivesse feito outra coisa, para você como se fosse sempre a primeira vez, e a mais perigosa. Do contrário seu número será um fracasso.
Carta de Fernando Sabino, enviada de Nova York em 6 de julho de 1946.. Arquivo Clarice Lispector da Fundação Casa de Rui Barbosa.

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Entrevistas:
O depoimento da escritora Clarice Lispector foi gravado no dia 20 de outubro de 1976, na sede do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Atuaram como entrevistadores a jornalista e escritora Marina Colasanti; o poeta, crítico e professor Affonso Romano de Sant’Anna e o diretor do MIS, João Salgueiro. Leia abaixo trechos da entrevista .A entrevista na íntegra pode ser lida na coletânea Outros escritos (2005), da editora Rocco.

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Affonso Romano de Sant’Anna: Clarice, vamos começar com alguns dados biográficos?

Clarice Lispector: Eu nasci na Ucrânia, mas já em fuga. Meus pais pararam em uma aldeia que nem aparece no mapa, chamada Tchetchelnik, para eu nascer, e vieram para o Brasil, onde cheguei com dois meses de idade. De modo que me chamar de estrangeira é bobagem. Eu sou mais brasileira do que russa, obviamente.

Affonso Romano de Sant’Anna: As pessoas te chamam de estrangeira por causa do sotaque?

Clarice Lispector: Por causa do “erre”. Pensam que é sotaque, mas não é. É língua presa. Poderiam ter cortado, mas é muito difícil, pois é um lugar sempre úmido, então dificilmente cicatrizaria. Agora deixa ficar.

João Salgueiro: Você tem irmãos, Clarice?

Clarice Lispector: Duas irmãs: Elisa Lispector e Tânia Kaufman. Bem, aqui no Brasil fomos para o Recife... Olha, eu não sabia que era pobre, você sabe?

Marina Colasanti: Você nunca disse isso inclusive. Eu nunca li isso dito por você.

Clarice Lispector: Eu era muito pobre. Filha de imigrantes.

Affonso Romano de Sant’Anna: O que seus pais faziam na Ucrânia?

Clarice Lispector: O meu pai trabalhava na lavoura e, quando chegou ao Rio, ele foi trabalhar com representação de firmas.

Affonso Romano de Sant’Anna: Mas havia alguma formação artístico-literária na família que tivesse te levado à literatura?

Clarice Lispector: Não. Agora, no dia do casamento do meu filho, Paulo Gurgel Valente, uma meio tia minha, que estava no casamento, chegou junto a mim e me deu a melhor coisa do mundo. Ela disse: “Você sabe que sua mãe escrevia? Ela escrevia diários”.

Affonso Romano de Sant’Anna: Você tem notícia de que alguém tenha guardado esses diários?

Clarice Lispector: Não, nada. Minha mãe era paralítica e eu morria de sentimento de culpa, porque pensava que tinha provocado isso quando nasci. Mas disseram que ela já era paralítica antes... Nós éramos bastante pobres. Eu perguntei um dia desses à Elisa, que é a mais velha, se nós passamos fome e ela disse que quase. Havia em Recife, numa praça, um homem que vendia uma laranjada na qual a laranja tinha passado longe. Isso e um pedaço de pão era o nosso almoço.

Marina Colasanti: Você não tinha lembrança disso, Clarice?

Clarice Lispector: Olha, eu não tinha consciência. Eu era tão alegre que escondia de mim a dor de ver minha mãe assim... Eu era tão viva!

Affonso Romano de Sant’Anna: O lançamento do seu primeiro livro, Perto do Coração Selvagem, em 1944, causou um certo impacto na crítica brasileira.

Clarice Lispector: Virgem Maria, e se causou. Minha irmã Tânia juntou as críticas, um livro grosso desse tamanho. Eu já estava fora, estava casada...

Affonso Romano de Sant’Anna: Você já estava fora do país?

Clarice Lispector: Não, estava em Belém, no Pará. Publiquei e dez dias depois estava em Belém, quer dizer, sem contato com escritores, e boba com as críticas. Inclusive uma de Sérgio Milliet, que foi o que mudou a opinião do Álvaro Lins. Eu tinha perguntado a ele se valia a pena publicar. Ele então respondeu: “Telefone daqui a uma semana”. Aí eu telefonei e ele disse: “Olha, eu não entendi seu livro, não. Mas fala com Otto Maria Carpeaux, é capaz dele entender”. Eu não falei com ninguém e publiquei assim mesmo. O livro havia sido rejeitado pela José Olympio, e essa edição foi um arranjo com A Noite. Eu não pagava nada, mas também não ganhava: se houvesse lucro era deles.

Marina Colasanti: Você partiu para esse livro com uma estrutura de romance já visualizada ou trabalhou primeiro formando pedaços que montou num romance?

Clarice Lispector: Olha... Alguém me dá um cigarro?... Obrigada. Eu tive que descobrir meu método sozinha. Não tinha conhecidos escritores, não tinha nada. Por exemplo, de tarde no trabalho ou na faculdade, me ocorriam idéias e eu dizia: “Tá bem, amanhã de manhã eu escrevo”. Sem perceber ainda que, em mim, fundo e forma é uma coisa só. Já vem a frase feita. E assim, enquanto eu deixava “para amanhã”, continuava o desespero toda manhã diante do papel em branco. E a idéia? Não tinha mais. Então, eu resolvi tomar nota de tudo o que me ocorria. E contei ao Lúcio Cardoso, que então eu conheci, que eu estava com um montão de notas assim, separadas, para um romance. Ele disse: “Depois faz sentido, uma está ligada a outra”. Aí eu fiz. Estas folhas “soltas” deram Perto do Coração Selvagem.

Affonso Romano de Sant’Anna: O que a crítica sempre exaltou no seu trabalho é que você surgiu com um estilo pronto: não era um estilo em progresso. Em Perto do Coração Selvagem você já era Clarice Lispector e era ainda uma menininha de dezessete, dezoito anos.

Clarice Lispector: Engraçado que eu não tenha tido influências. Já estava guardado dentro de mim. Eu já tinha escrito contos antes disso.

Affonso Romano de Sant’Anna: Há uma influência que parece que você mesma reconheceu uma vez, se não de influência direta, pelo menos de leitura constante sua, que era O Lobo da Estepe, do Herman Hesse.

Clarice Lispector: Isso eu li aos treze anos. Fiquei feito doida, me deu uma febre danada, e eu comecei a escrever. Escrevi um conto que não acabava mais e que eu não sabia como fazer muito bem, então rasguei e joguei fora.

Marina Colasanti: Você rasga muita coisa?

Clarice Lispector: Agora eu aprendi a não rasgar nada. Minha empregada, por exemplo, tem ordem de deixar qualquer pedacinho de papel com alguma coisa escrita lá como está.

Marina Colasanti: E o que faz com que você escreva livros infantis esporadicamente?

Clarice Lispector: Bom, primeiro, meu filho Paulo, em Washington...

João Salgueiro: Quantos filhos você tem?

Clarice Lispector: Dois. Um está morando com o pai e o outro está casado, mora aqui no Rio, Pedro e Paulo Gurgel Valente. Quando eu estava escrevendo A Maça no Escuro, em Washington, meu filho Paulo me pediu, em inglês, — eu falava em português com ele, mas ele falava comigo em inglês — que escrevesse uma história para ele, e eu respondi: “Depois”. Mas ele disse: “Não, agora”. Então tirei o papel da máquina e escrevi O Mistério do Coelho Pensante, que é uma história real, uma coisa que ele conhecia. Aí ficou lá. Eu escrevi em inglês para que a empregada pudesse ler para ele, que nessa época não era alfabetizado ainda... Eu já perguntei a um médico se é normal ter tantas idéias ao mesmo tempo e ele me disse que todo mundo tem, por isso é que eu me perco. Eu não sei mais o que estava falando... Ah! Aí a história ficou lá. Passado um tempo, um escritor paulista, eu nem sei o nome mais, que organizava livros infantis, me perguntou se eu tinha algum. Eu disse que não. De repente me lembrei que tinha a história do coelho e que era só traduzir para o português, o que eu mesma fiz.

João Salgueiro: Clarice, vamos fazer uma cronologia da sua obra: seu primeiro livro foi Perto do Coração Selvagem, em 1944; a seguir veio O Lustre, que já estava até escrito, mas só foi publicado em 1946; depois A Cidade Sitiada, em 1949.

Clarice Lispector: A Cidade Sitiada foi, inclusive, um dos meus livros mais difíceis de escrever porque exigiu uma exegese que eu não sou capaz de fazer. É um livro denso, fechado. Eu estava perseguindo uma coisa e não tinha quem dissesse o que era. San Thiago Dantas abriu o livro, leu e pensou: “Coitada da Clarice, caiu muito”. Dois meses depois, ele me contou que, ao ir dormir, quis ler alguma coisa e o pegou. Então ele me disse: “É o seu melhor livro”.

Affonso Romano de Sant’Anna: Qual foi a motivação que te levou a escrever esse livro.

Clarice Lispector: É a formação de uma cidade, a formação de um ser humano dentro de uma cidade. Um subúrbio crescendo, um subúrbio com cavalos, tudo tão vital... Construíram uma ponte, construíram tudo e de modo que já não era subúrbio. Então o personagem dá o fora.

Affonso Romano de Sant’Anna: Como foi o processo de criação desse livro? Você partiu de uma idéia determinada ou foi juntando textos também?

Clarice Lispector: Foi tudo meio cegamente... Eu elaboro muito insconscientemente. Ás vezes pensam que eu não estou fazendo nada. Estou sentada numa cadeira e fico. Nem eu mesma sei que estou fazendo alguma coisa. De repente vem uma frase...

Marina Colasanti: Inclusive você tem um tempo físico de aquecimento, não é? Uma vez você me disse que acorda muito cedo de manhã, praticamente de madrugada, e não vai logo escrever. Fica andando pela casa, tomando café.

Clarice Lispector: É isso sim. Fico olhando, bobando...

Marina Colasanti: Fazendo um cooper literário interior... (risos)

Clarice Lispector: Depois de A Cidade Sitiada veio A Maçã no Escuro, que foi escrito... Foi engraçado, porque eu escrevi por duas vezes dois livros ao mesmo tempo. Laços de Família e A Maçã no Escuro foram escritos ao mesmo tempo. Eu ia para um conto, escrevia e voltava para A Maçã no Escuro. Mais tarde, isso aconteceu de novo com um livro que não é grande coisa: Onde Estivestes de Noite? e não me lembro qual outro, que eu escrevi também ao mesmo tempo.

Affonso Romano de Sant’Anna: Foi A Via Crucis do Corpo?

Clarice Lispector: Não foi, não.

Affonso Romano de Sant’Anna: A Maçã no Escuro sempre me impressionou muito. Aliás, dos seus livros foi o que mais me impressionou. Lembro que em 1960 ou 61, em torno disso, você foi a Belo Horizonte para uma tarde de autógrafos. Eu tinha publicado um livro de ensaios, ainda como estudante de letras, e tinha um ensaio sobre ele. E lá eu, jovialmente, insistia com você sobre as raízes do livro. Porque eu achava o livro tão bem estruturado no sentido de...

Clarice Lispector: Foi o único livro bem estruturado que eu escrevi, eu acho. Se bem que não: Água Viva segue o mesmo curso.

Affonso Romano de Sant’Anna: Exato. Era como se você tivesse estudado, até profundamente, uma série de assuntos sobre linguagem, uma série de informações contextuais que são importantes. Eu lembro de que você tinha me dito que não, que tinha escrito tudo num certo jato bastante individual de produção.

Clarice Lispector: É. Eu não estou muito a par das escolas e tudo, não.

Affonso Romano de Sant’Anna: Entre Ermelinda e Vitória, dentro de A Maçã no Escuro, qual é mais Clarice?

Clarice Lispector: Talvez Ermelinda, porque ela era frágil e medrosa. Vitória era uma mulher que eu não sou... Eu sou o Martim.

Affonso Romano de Sant’Anna: Exatamente. Teu livro na verdade é uma grande parábola. É uma parábola do indivíduo em busca da consciência, em busca de sua linguagem.

Clarice Lispector: Se fazendo. Tanto que a primeira parte se chama “Como nasce o mundo”. A segunda é “O nascimento do herói”, porque já era homem e queria ser herói. E a terceira é “A maçã no escuro”.

Affonso Romano de Sant’Anna: Você sabia que a Clarice é uma tremenda bruxa? (risos)
Clarice Lispector: Ah, isso foi um crítico, não me lembro de que país latino-americano, que disse que eu usava as palavras não como escritora, mas como bruxa. Daí talvez o convite para participar do Congresso de Bruxaria da Colômbia. Me convidaram e eu fui.

Marina Colasanti: A única bruxa brasileira. (risos)

Affonso Romano de Sant’Anna: Mas conte sobre as suas relações com a bruxaria, Clarice. Se você tivesse que introduzir o leitor nestes mistérios, quais seriam os dados?

Clarice Lispector: Não tem, não tem!

João Salgueiro: A idéia de bruxaria nasceu do crítico, e você não a desenvolveu?

Clarice Lispector: Nada, nada. Foi inconseqüente, inclusive estranhei o clima em Bogotá, na Colômbia. Tinha dores de cabeça, e, um dia, me tranquei no quarto, fiquei sozinha. Não atendia telefone, só chamava para comida e bebida. Estava achando tudo muito enjoado. Eu enjôo muito facilmente das coisas...

Affonso Romano de Sant’Anna: Como é que foi a sua apresentação lá?

Clarice Lispector: Disseram que queriam um texto meu. Eu não sabia fazer um texto sobre bruxaria porque não sou bruxa, não é? Então, traduzi para o inglês O Ovo e a Galinha. Aí eu pedi a um fulano de tal, que eu não me lembro o nome, para ler. Ele tinha a tradução espanhola. A maior parte das pessoas não sabe o que foi lido, não entendeu nada. Agora, um americano ficou tão alucinado que me pediu uma cópia daquele conto
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Entrevista com Lygia Fagundes Telles:
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Você sabe o que uma famosa escritora disse para a outra? Se não sabe, leia o que Clarice Lispector perguntou e Lygia Fagundes Telles respondeu. Mas o final dessa conversa poderá ser na Academia.
Eu pretendia ir a São Paulo para entrevistar Lygia Fagundes Telles, pois valia a pena a viagem. Mas acontece que ela veio ao Rio para lançar seu novo livro, Seminário dos ratos. Entre parênteses, já comecei a ler e me parece de ótima qualidade. O fato dela vir ao Rio, o que me facilitaria as coisas, combina com Lígia: ela nunca dificulta nada. Conheço a Lygia desde o começo do sempre. Pois não me lembro de ter sido apresentada a ela. Nós nos adoramos. As nossas conversas são francas e as mais variadas. Ora se fala em livros, ora se fala sobre maquilagem e moda, não temos preconceitos. Às vezes se fala em homens.

Lygia é um best-seller no melhor sentido da palavra. Seus livros simplesmente são comprados por todo o mundo. O jeito dela escrever é genuíno pois se parece com o seu modo de agir na vida. O estilo e Lygia são muito sensíveis, muito captadores do que está no ar, muito femininos e cheios de delicadeza. Antes de começar a entrevista, quero lembrar que na língua portuguesa, ao contrário de muitas outras línguas, usam-se poetas e poetisas, autor e autora. Poetisa, por exemplo, ridiculariza a mulher-poeta. Com Lygia, há o hábito de se escrever que ela é uma das melhores contistas do Brasil. Mas do jeitinho como escrevem parece que é só entre as mulheres escritoras que ela é boa. Erro. Lygia é também entre os homens escritores um dos escritores maiores. Sabe-se também que recebeu na França (com um conto seu, num concurso a que concorreram muitos escritores da Europa) um prêmio. De modo que falemos dela como ótimo autor. Lygia ainda por cima é bonita.
Comecemos pois:
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– Como nasce um conto? Um romance? Qual é a raiz de um texto seu?
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– São perguntas que ouço com freqüência. Procuro então simplificar essa matéria que nada tem de simples. Lembro que algumas idéias podem nascer de uma simples imagem. Ou de uma frase que se ouve por acaso. A idéia do enredo pode ainda se originar de um sonho. Tentativa vã de explicar o inexplicável, de esclarecer o que não pode ser esclarecido no ato da criação. A gente exagera, inventa uma transparência que não existe porque – no fundo sabemos disso perfeitamente – tudo é sombra. Mistério. O artista é um visionário. Um vidente. Tem passe livre no tempo que ele percorre de alto a baixo em seu trapézio voador que avança e recua no espaço: tanta luta, tanto empenho que não exclui a disciplina. A paciência. A vontade do escritor de se comunicar com o seu próximo, de seduzir esse público que olha e julga. Vontade de ser amado. De permanecer. Nesse jogo ele acaba por arriscar tudo. Vale o risco? Vale se a vocação for cumprida com amor, é preciso se apaixonar pelo ofício, ser feliz nesse ofício. Se em outros aspectos as coisas falham (tantas falham) que ao menos fique a alegria de criar.

– Para mim a arte é uma busca, você concorda?
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– Sim, a arte é uma busca e a marca constante dessa busca é a insatisfação. Na hora em que o artista botar a coroa de louros na cabeça e disser, estou satisfeito, nessa hora mesmo ele morreu como artista. Ou já estava morto antes. É preciso pesquisar, se aventurar por novos caminhos, desconfiar da facilidade com que as palavras se oferecem. Aos jovens que desprezam o estilo, que não trabalham em cima do texto porque acham que logo no primeiro rascunho já está ótimo, tudo bem – a esses recomendo a lição maior que está inteira resumida nestes versos de Carlos Drummond de Andrade:
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Chega mais perto e contempla as palavras
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta
pobre ou terrível que lhe deres
Trouxeste a chave?
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– Você, Clarice, que é dona de um dos mais belos estilos da nossa língua, você sabe perfeitamente que apoderar-se dessa chave não é assim simples. Nem fácil, há tantas chaves falsas. E essa é uma fechadura toda cheia de segredos. De ambigüidades.
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– Fale-nos do Seminário dos ratos.

– Procurei uma renovação de linguagem em cada conto desse meu livro, quis dar um tratamento adequado a cada idéia: um conto pode dar assim a impressão de ser um mero retrato que se vê e em seguida esquece. Mas ninguém vai esquecer esse conto-retrato se nesse retrato houver algo mais além da imagem estática. O retrato de uma árvore é o retrato de uma árvore. Contudo, se a gente sentir que há alguém atrás dessa árvore, que detrás dela alguma coisa está acontecendo ou vai acontecer, se a gente sentir, intuir que na aparente imobilidade está a vida palpitando no chão de insetos, ervas – então esse será um retrato inesquecível. O escritor – ai de nós – quer ser lembrado através do seu texto. E a memória do leitor é tão fraca. Leitor brasileiro, então, tem uma memória fragilíssima, tão inconstante. O padre Luís (um padre santo que fez a minha primeira comunhão, foi ele quem me apresentou a Deus) me contou que um dia conduziu uma procissão no Rio. A procissão saía de uma igreja do Posto Um, dava uma volta por Copacabana e retornava em seguida. Muita gente, todo mundo cantando, velas acesas. Mas à medida que a procissão ia avançando, os fiéis iam ficando pelas esquinas, tantos botequins, tantos cafés. E o mar? Quando finalmente voltou à igreja, ele olhou para trás e viu que restara uma meia dúzia de velhos. E os que carregavam os andores. “As pessoas são muito volúveis”, concluiu padre Luís. Em outros termos, o mesmo diria Garrincha quando um mês depois de ser carregado nos ombros por uma multidão delirante, com o mesmo fervor e no mesmo estádio foi fragorosamente vaiado. Tão volúveis...
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– Isso não é pessimismo?
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– Não sou pessimista, o pessimista é um mal-humorado. E graças a Deus conservo o meu humor, sei rir de mim mesma. E (mais discretamente) do meu próximo que se envaidece com essas coisas, do próximo que enche o peito de ar, abre o leque da cauda e vai por aí, duro de vaidade. De certeza, tantas medalhas, tantas pompas e glórias, eu ficarei ! Não fica nada. Ou melhor, pode ser que fique, mas o número dos que não deixaram nem a poeira é tão impressionante que seria inocência demais não desconfiar. Sou paulista, e como o mineiro, o paulista é meio desconfiado. Então, o certo é dizer com Millôr Fernandes: “quero ser amado em Ipanema, agora, agora”. Em Ipanema vou lançar esse Seminário dos ratos. O que já é alguma coisa...
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– Como nasceu esse título?
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– Houve em São Paulo um seminário contra roedores. Lá acontecem diariamente dezenas de seminários sobre tantos temas, esse era contra os ratos. “Daqui por diante eles estarão sob controle”, anunciou um dos organizadores, e o público caiu na gargalhada, porque nessa hora exata um rato atravessou o palco. Tantos projetos fabulosos, tantas promessas. Discursos e discursos com pequenos intervalos para os coquetéis. Palavras, palavras. E de repente pensei numa inversão de papéis, ou seja, nos ratos expulsando todos e se instalando soberanos no seminário. “Que século, meu Deus”, exclamariam repetindo o poeta. E continuariam a roer o edifício. Assim nasceu esse conto.
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– Quais são os temas do livro?
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– São quatorze textos que giram em torno de temas que me envolvem desde que comecei a escrever: a solidão, o amor e o desamor. O medo. A loucura. A morte – tudo isso que aí está em redor. E em nós. Quando fico deprimida vejo claramente essas três espécies em extinção: o índio, a árvore e o escritor. Mas reajo, não sei tra- balhar sem a esperança no coração. Sou de Áries, recebo a energia do sol. E de Deus, o que vem a dar no mesmo, tenho paixão por Deus.
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– Há muita gente louca no Seminário dos ratos?
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– Sim, há um razoável número de loucos nesse meu livro e também nos outros. Mas a loucura não anda mesmo por aí galopante? “Os homens são tão necessariamente loucos que não ser louco representaria uma outra forma de loucura”, disse Pascal.
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– O que mais lhe perguntam?
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– Eis o que me perguntam sempre: compensa escrever? Economicamente, não. Mas compensa – e tanto – por outro lado através do meu trabalho fiz verdadeiros amigos. E o estímulo do leitor? E daí? “As glórias que vêm tarde já vêm frias”, escreveu o Dirceu de Marília. Me leia enquanto estou quente.

2 comentários :

  1. Aff que mulher perfeita viu. NA sua imensidão de sabedoria!!

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  2. Que blog perfeito !!!!! adorei ! Perfeitamente Clarice !!!! estou encantada!

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